O fim-de-semana em Monza jogou a Fórmula 1 em sua maior crise desde as mortes de Ayrton Senna e Roland Ratzenberger no Grande Prêmio de San Marino de 1994. O clima no paddock se assemelhava a qualquer coisa, menos a um evento esportivo. Nervosismo, ironia, mentira, protesto, traição, intriga, choro, crime (e, por enquanto, nenhum castigo), tudo dando um ar de novela ao paddock da categoria.
O esporte, que já não andava lá estas coisas, ficou completamente em segundo plano. No domingo, para variar, mais uma corrida modorrenta. Sim, houve duas ultrapassagens, uma de Robert Kubica sobre Nico Rosberg e outra de Lewis Hamilton sobre Kimi Räikkönen. Esta última lhe valeu o segundo lugar na prova e foi soberba, uma manobra valente e executada com perfeição incrível. Depois, o inglês esnobou dizendo que havia sido “pretty straightforward”, bem normal. Mas, no fundo, estas manobras são migalhas que os fãs do esporte têm de sorver com sofreguidão dentro do deserto que se transformou o espetáculo. Pelo menos, jogaram algumas migalhas. Na maioria das corridas deste ano, a barriga ficou mesmo vazia.
Ah, mas temos a novela, e quem não gosta delas? Diante da habitual falta de transferência do paddock aqui, o que mais se fez em Monza foi especular. E, pelo menos desta vez, a refeição servida foi farta e saborosa. Começou com a troca de correspondência entre Pedro de la Rosa e Fernando Alonso onde, alega-se, haveria informações sobre o carro da Ferrari, o F2007, provenientes do material possuído pelo projetista Mike Coughlan e que fora enviado pelo “traidor” da Ferrari Nigel Stepney. E estes e-mails teriam sido enviados no começo do ano, muito antes do que Coughlan alegou ter recebido o tal dossiê. Na verdade, ninguém sabe o conteúdo desta correspondência – e nem se ela será a principal “nova evidência” que a FIA examinará na quinta-feira.
A tensão aumentou no sábado, e também no domingo, quando policiais italianos foram ao motorhome da McLaren entregar um aviso oficial a alguns membros da equipe – incluindo seus dois principais nomes, Ron Dennis e Martin Whitmarsh – de que estão sendo investigados por fraude e espionagem industrial pela justiça do país. A equipe respondeu com uma nota de desagravo, insinuando que a cena fora armada apenas para dar um golpe psicológico no time que ousava desafiar a Ferrari em sua própria casa – se foi, não funcionou porque o banho na pista ocorreu de qualquer jeito.
Para completar, no domingo, ficou mais do que óbvia a crise entre Fernando Alonso e a equipe. Na hora da chegada, os mecânicos da McLaren, como de costume, ficaram perfilados junto à cerca que separa os boxes. Mas apenas alguns deles aplaudiram de forma tímida a vitória do piloto espanhol. Seis segundos depois, quando seu companheiro Lewis Hamilton passou em segundo lugar, a turma finalmente explodiu em júbilo, com punhos cerrados ao ar e gritos de incentivo. Na entrevista coletiva após a prova, quando foi perguntado porque não passou junto ao pitlane na chegada, como é praxe, Alonso não se conteve. “Aqui passamos muito rápido, iria levantar muito vento na cara deles”, afirmou, rindo sarcasticamente.
Mesmo o pior observador conseguiria enxergar que a colaboração do piloto com a investigação da FIA, como exigido pela entidade, ocorreu com a maior boa vontade. Há até quem diga que seria ele o responsável por apresentar a entidade estas tais “novas evidências”. Parece burrice, afinal ele está brigando pelo título, mas é um risco calculado. Em primeiro lugar, uma condenação à equipe o deixaria livre para assinar com quem quiser, sem a necessidade de se pagar uma recisão de contrato. Em segundo lugar, a FIA prometeu uma espécie de anistia para quem colaborasse: pode ser até que lhe tenha assegurado não mexer na briga pelo Mundial de Pilotos. Em terceiro lugar, Alonso sabe de uma coisa: perder o título de 2007 no tribunal seria péssimo; perder na pista para seu companheiro de equipe estreante e ver toda a festa deste com a equipe que tanto odeia, seria pior ainda. Ali dentro, não há mais clima para uma convivência minimamente saudável. Só existem aparências.
A movimentação no paddock de Monza deu a impressão de que a decisão do Conselho Mundial não vai sair na quinta-feira. Ela já teria sido decidida pelos principais personagens da categoria e só será divulgada lá. As novas provas, quaisquer que sejam, parecem mesmo comprometer a McLaren politicamente. Se a equipe feriu a ética do esporte e se realmente se aproveitou das informações parar influenciar a performance de seu carro, é algo que a opinião pública dificilmente saberá. E, para os principais jogadores deste jogo, tudo isto não importa.
As informações dão conta de que Luca di Montezemolo está se sentindo bastante confortável politicamente para exigir que a McLaren-Mercedes seja excluída deste e do próximo Mundial. Sustentando seu argumento, vejam só, está o veredicto da FIA expedido em 26 de julho. Aquele que inocentou a McLaren, mas disse que novas informações seriam levadas ao Conselho Mundial e poderiam implicar exatamente na pena solicitada pelo italiano. O Conselho já foi chamado e parece que a base jurídica da Ferrari é muito sólida.
Não é preciso ser nenhum gênio para saber que, se isto acontecer, a Fórmula 1 sofreria um golpe quase fatal. Teríamos a Mercedes-Benz com a imagem incinerada. Temos na presidência da Renault um sujeito que acha a participação na categoria um desperdício e encontraria em um escândalo destas dimensões um argumento sólido para tirar seu time de campo. Honda e Toyota, que investem milhões para passar vexame, também repensariam se faria sentido continuar. Vai ver, ia sobrar só o Frank Williams, o “último garagista” por lá.
Bernie Ecclestone teve um longo encontro com Montezemolo no sábado, no motorhome da Ferrari. Possivelmente, foi para tentar encontrar algum tipo de compromisso para minimizar o dano de imagem que a categoria sofrerá na quinta-feira. Para que a decisão do Conselho, por mais irracional ou injusta que pareça para a opinião pública, mantenha as aparências do circo.
Eu apostaria que ele conseguiu. Ecclestone é um homem extremamente inteligente e sabe da ganância que os dirigentes das equipes possuem por um pedaço de seu milionário bolo. Sabe também distribuir bem estes pedaços de acordo com a fome de cada um. E deve ter aprendido também com o episódio. No fundo, escândalos, espionagem, jogo político, tudo isto forma o corpo principal da Fórmula 1 nos últimos anos. Mas jamais atingiu um nível alarmante como o atual, essencialmente por envolver as duas equipes mais poderosas ali dentro. Podem apostar que, se Nigel Stepney tivesse passado o desenho de um parafuso do F2007 para os engenheiros da Spyker, a equipe seria alijada do paddock em questão de dias.
Certamente, as diversas especulações surgidas neste fim-de-semana jamais se confirmarão. Certamente também, algumas delas são completamente infundadas. Mas todas são frutos da falta de transparência que move o jogo. Se o esporte ficasse em primeiro plano, as manobras de bastidores passariam completamente desapercebidas – durante muito tempo foi assim. Mas não há como o público se contentar com o que ocorre na pista e alguns de seus fãs – e até alguns jornalistas – transferiram seus anseios para o plano político com espantosa naturalidade. Aceitaram que o jogo seja de cartas marcadas e usam argumentos completamente tortos para torcer que sua equipe seja absolvida “porque a outra sempre fez sacanagem também” ou para que a rival seja culpada “porque uma sacanagem como estas nunca havia sido feita”.
Não se espantem se a decisão do Conselho Mundial se basear em uma matemática exata que deixará quatro pilotos brigando pelo título até a última volta da última corrida. Assim, a imagem da F-1 permaneceria preservada, a audiência atingiria níveis astronômicos, patrocinadores e emissoras de televisão ficariam satisfeitíssimos.
Provavelmente, este monte de linhas gastas para anunciar a crise no circo ficarão esquecidas no passado daqui a 96 horas. O circo vai continuar. Com os palhaços sentados na platéia.
Mas há sempre uma esperança: as manifestações de uma parte ainda pequena do público – nas arquibancadas dos circuitos e na sua ausência delas; na Internet; nas opiniões enviadas aos jornais – mostra que o amor pela Fórmula 1 anda muito maltratado pelo quadro atual. É um bom sinal. Bernie é um homem inteligentíssimo e está vendo isto. Se a insatisfação aumentar e, por conseqüência, o bolo diminuir, podem crer que a Fórmula 1 será repensada de cabo a rabo. Eu torço muito para que isto aconteça. Porque este Mundial de 2007, apesar do fator Hamilton, apesar de ter uma briga quádrupla em quase todas as provas, está no fundo uma tristeza de se ver. Pelo menos para quem gosta de corridas. E eu detesto novelas!
19 comentários:
Ola Ico, gostei da tua abordagem. Muito provavelmente, é isso que vai acontecer. Aliás, não me admiraria que aquilo que mantêm a Formula 1 nos eixos, neste momento, chama-se Bernie Ecclestone.
E sem ele, provavelmente o desporto que todos nós conhecemos estaria morto ou a morrer. Vamos a ver o que quinta-feira nos reserva. E também faço minha a tua aposta.
A sensação que fica é que a FIA, na primeira reunião do tal Conselho, pagou para ver quais seriam as reações do público e participantes. Fez o tal "se colar, colou." Senão colasse - como não colou - ficaria com uma carta na manga pronta para ser usada em qualquer momento. Deixou a McLaren no balaio com o tal "se novos indícios aparecerem" enquanto o campeonato continuava.
Aí a McLaren disparou no campeonato e chegou o momento da F1 jogar sua carta na mesa. É provável mesmo que seja suspensa por 2 ou 3 provas para, na última corrida, todo mundo ficar embolado no Gp Brasil.
Toda essa novela está mais para um "Vale a pena ver de novo", pois em 94 o Schumacher foi suspenso de algumas corridas até o Hill encostar na tabela. E como em 94, parece que a F1 será repensada. Só que, desta vez, seja para melhor.
Parabens pelo texto, simplesmente fantastico
Abraco
Renato
clap clap clap clap
Análise soberba, Ico. Parabéns.
Parabens mais uma vez Ico, muito boa sua abordagem acerca do assunto, infelizmente tbem acho que o forno ja esta aceso e os ingredientes de mais uma pizza estao sendo preparados....
bravo!
ótimo texto! a Globo precisa de gente assim, mas acho que eles nao gostam de qualidade jornalística lá.
(como se chamará a pizza? à McLarenesa?)
O problema é que essa geração atual, gosta de tudo isto que está acontecendo. Eu pelo, menos, conheço muitas pessoas que acham que a F1 é isso ai que estamos vendo, um desfile na pista, pessoas que se odeiam, sacanagem nos bastidores.
Felizmente vi o lado bom do automobilismo.
Sobre o que vai acontecer, a situação é muito complicada como disse em outra postagem. Excluir a Mclaren do campeonato deste ano já é ruim, do ano que vem é fatal, não apenas para a equipe, mas causaria um "efeito dominó" como você mesmo disse. Por outro lado, se a punição for muito branda, quem pula fora é a Ferrari. E F1 sem Ferrari é inimaginável.
A punição não pode ser demais nem de menos. Tem que ser na medida. Acho que é isto que Max, Bernie, Luca, Ron e Flavio estão quebrando a cabeça neste exato momento. Uma forma de punir para "salvar a imagem e o campeonato" e ainda assim agradar gregos e troianos.
Abraços.
Uma boa pedida para mim seria uma grande multa para a McLaren, e a perda dos pontos de construtores desta temporada.
Acredito que os pilotos não tem culpa e que seria a forma mais justa de acabar com a palhaçada que está acontecendo.
O Traíra vai pra Maranelo ano que vem sem multas por conta da sacanagem da MacLaren, o Hamilton fica feliz por se livrar do espanhol, a ferrari dispensa o piloto com menor pontuação e mais defeitos "técnicos" falta de combustível e suspensão quebrada por exemplo e o circo continua.
Ico, irretocável. Esse e outros textos que você enviou de Monza, mencionando que o público está - finalmente - perdendo a paciência com as medidas tomadas pelos dirigentes.
Infelizmente, precisou chegar a este ponto para ser assim.
Ico,
Serei breve:
• Não gosto do Ron Denis;
• Não gosto do Alonso e menos ainda do Hamilton, embora os ache excelentes pilotos, os melhores da F1 atualmente, mas não gosto da soberba do Espanhol e da falsidade do Inglês.
• Não gosto do que é a F1 hoje em dia.
Isto posto, acho que para que a F1, F3, Motovelocidade, GP2, e principalmente Endurance e o WRC tenham vida longa e prosperem, a melhor punição que a FIA poderia dar, seria a EJACULAÇÃO "Retardada" do Sr. Bernie Ecclestone, que desde que vendeu a Brabham e na ânsia de ficar cada vez mais dono e mais rico, vem matando todas as categorias do automobilismo mundial em prol de seu próprio bolso.
grande ICO,
mais um texto definitivo q explora todas as versoes da história. li aqui outro dia (e em nenhum outro lugar) sobre o envolvimento do briatore com máquina de costura na mao pra ajeitar tudo com ron dennis, ferrari e FIA, levando o alonso de lambuja.
aliás, vc costuma escrever textos definitivos, como o de Monaco 84 sobre a polêmica interrupcao da prova sob chuva pelo Jackie Ickyx (eta nomezinho difícil) q acabou beneficiando o Senna. alem do stefan beloff, q poucos conhecem.
continue sempre assim. já tá nos favoritos, em local de honra!!!
abracos e até Spa
ps. aliás, eu vo na corrida. se quiser mando fotos pra postar no ßlog.
Parabéns pela visão e pelo texto.
Acredito piamente que o resultado da quinta próxima, será o da punição com precisão matemática.
Precisamos de uma F1 que não nos deixe com sono nas manhãs de domingo.
Brilhante! Ou como um bom circo q é a F1 diria... bravo , bravo, bravíssimo!
Seu texto expressa pleanmente o sentimento de quem gosta deste esporte e tá cansado de tanta chatices nestas corridas enfadonhas da atualidade.
Minha esperança q repensem já todo o formato atual da F1.
Mas pra isso será q terei q torcer pra q tudo vá mau após este episodio, q a Maclaren tenha uma carta na manga e tb compromenta a Ferrari com algo?
Caíque Berlineta,
Disse tudo. Valeu.
Abraço,
Barba
Ico,
Não dá pra retocar nada do que vc escreveu. Simplesmente perfeito. Análise perfeita.
Isto posto, não me surpreenderia se a McLaren ficar suspensa por 2 corridas e nas 2 últimas do ano continua a suspensão, só que para essas 2 corridas e o próximo campeonato, com direito à sursis. Tá certo que não faz nenhum sentido, mas pouca coisa do que eles encontram como justificativa faz sentido. Aliás, acho que quanto mais distorcidos os chutes que a gente der tentando adivinhar o que será definido, mais perto se chegará de como pensam as cabeças que definem os rumos dessa F1 de hoje...
Ico,
Parabéns pelo excelente texto.
Pelo choro de domingo, o Ron Dennis sabe que sua "batata" assou... Vamos ver o quanto.
Abraços.
Caimar.
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