segunda-feira, 1 de outubro de 2007

UMA GRANDE MULHER

exatos 23 anos, Mariette Hélène Delangle morria na mais absoluta miséria na cidade de Nice. Sem dinheiro, sem amigos, vivia com o apoio de uma instituição de caridade em um quarto num canto sujo da cidade. O dono da pensão não se importou com aquela caixa repleta de fotos e documentos do passado glorioso daquela senhora. Hellé Nice, como era conhecida, havia tido uma vida cheia de altos e baixos, destruída por um acidente sofrido em uma corrida em São Paulo e por acusaçõesnunca provadas ou fundamentadas – de ter colaborado com o regime nazista durante a II Guerra Mundial.

Confira uma coluna que escrevi sobre um momento decisivo da vida de Hellé Nice, publicada em junho de 2004 no GP Total.

TRAGÉDIA NO JARDIM AMÉRICA

30/06/04


A francesa Hellé Nice
sempre me cativou como um dos personagens mais fascinantes do mundo das corridas, desde que realizei a pesquisa textual e iconográfica do livro "A História do Automobilismo Brasileiro", de Reginaldo Leme. Sabia então do seu grave acidente no GP de São Paulo de 1936, que encerrou sua carreira e a vida de outras cinco pessoas. Conhecia também o fato dela ter sido dançarina antes de começar a correr, e que enfrentou na pista os maiores nomes do rico cenário europeu dos anos 30.

Há alguns meses, a escritora inglesa Miranda Seymour lançou uma biografia sobre Nice, ou Heléne Delangle (seu verdadeiro nome), intitulada "The Bugatti Queen". Acompanhado do pouco que eu sabia, veio uma estória de vida fascinante, sobre uma mulher vivaz, de personalidade forte, que saiu de uma origem humilde para conviver com barões e pilotos em aventuras picantes, até cair no mais absoluto anonimato, velha, pobre e esquecida.

Não vou fazer a besteira de escrever aqui um resumo com os detalhes da obra e estragar o prazer de quem pretende ler o livro. Fica a dica para quem tiver um dinheirinho sobrando e bons conhecimentos da língua inglesa: compre-o em um desses sites estrangeiros, leia-o, deleite-se e comente sobre o que você achou aqui no GP Total. Mais do que um retrato de um dos nomes mais carismáticos do automobilismo, o livro é um relato muito bem escrito sobre a trajetória de uma Mulher, com M maiúsculo (bela, vaidosa, cativante, aventureira, corajosa, cheia de caprichos, sensual, complicada, etc, etc, etc.).

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Mas vale dar um gostinho e contar com mais detalhes que o livro a história da maior tragédia automobilística ocorrida em solo brasileiro. O Grande Prêmio Cidade de São Paulo foi marcado para o dia 12 de julho de 1936, aproveitando a presença de três renomados corredores europeus que se exibiram na Gávea, no mês anterior. Os italianos Carlo Pintacuda e Attilio Marinoni corriam pela Alfa Romeo, cujo departamento esportivo era coordenado por um certo Enzo Ferrari.

Também com uma Alfa, mas de uso privado, estava a francesa Hellé Nice. Seu convite para se apresentar no Brasil pode ser explicado pela amizade que tinha com o embaixador brasileiro em Paris, Luiz Martins de Souza Dantas. Durante a II Guerra Mundial, o diplomata se destacaria ao salvar mais de 800 vidas arrumando documentos para que judeus entrassem no País. O episódio é citado no especial que o Panda fez com Bernardo Souza Dantas, o brasileiro pioneiro em Le Mans. Confira nos nosso arquivo de especiais!

O local escolhido para a corrida foi o Jardim América. A largada ocorreu na Avenida Brasil, em frente ao prédio do Automóvel Clube Paulista (que opera ainda hoje no mesmo local), e o trajeto incluiu também as ruas Colômbia, Estados Unidos e Canadá e era rico em curvas de 90 graus. A superfície ainda era de terra.

A experiência, a habilidade e o equipamento deixavam claro que a vitória ficaria com um dos dois italianos. A verdadeira disputa da corrida estaria reservada para o terceiro lugar. Além de Hellé Nice, estavam bem cotados o argentino Vittorio Coppoli (vencedor da Gávea em junho) e os brasileiros Manoel de Teffé, Chico Landi e Benedito Lopes.

Uma multidão compareceu ao evento, a mais importante competição automobilística na história de São Paulo até então. A largada, prevista para as 9 horas, foi retardada em meia hora pois o governador do Estado teve dificuldades para chegar ao local, tamanho o volume do tráfego na região (sim, paulistano, naquela época...).

A corrida correu como o esperado: Pintacuda largou atrás (o grid foi definido pelo número de inscrição) e em três voltas assumiu a liderança, de onde não mais saiu. Marinoni deu uma escapada na quinta volta, danificando o carro levemente e perdendo muito tempo nos boxes. Mesmo assim, oito volta depois, subiu para o segundo lugar novamente.

A briga pelo terceiro lugar era das mais animadas. Na 52ª volta das 60 programadas, Hellé Nice fez sua única parada na prova para abastecer sua Alfa Romeo, perdendo a posição para Teffé. Pilotando com arrojo, a francesa passou a recuperar cerca de cinco segundos por volta em relação ao herói local. Quando a última volta foi aberta, menos de cem metros separavam os dois. Um final eletrizante estava se desenhando.

Ao fazer a última curva antes da reta de chegada, o carro de Teffé espalhou e permitiu que Nice emparelhasse sua Alfa Romeo Monza. Os bólidos romperam a Avenida Brasil lado a lado, em alta velocidade, levando um público desacostumado às corridas ao êxtase. É nesta hora que a tragédia acontece.

A poucos metros da linha de chegada, o carro da francesa atinge um obstáculo. As únicas fotos conhecidas do acidente são as do suíço Arnaldo Binelli, amante da piloto na época. Mas o ângulo em que elas foram tiradas não permitem nenhuma conclusão. Os testemunhos divergem: para alguns, o carro foi atingido por um fardo de alfafa, que separava o público da pista e acabou empurrado por um espectador mais afoito; outros afirmam que o Alfa Monza atropelou um policial que saiu de seu posto para acalmar a multidão; há quem diga que o carro bateu no meio-fio, quando Nice buscava alguns centímetros a mais no pouco espaço oferecido por Teffé para a ultrapassagem.

O bólido pintado de azul deu duas voltas no ar, aterrisando em parte sobre um grupo de oficiais e ceifando quatro vidas. A corredora francesa voou dez metros e caiu sobre um militar, cujo corpo absorveu todo o impacto. Foi o que salvou sua vida, mas não a livrou de um eterno sentimento de culpa. "Matei um pobre homem com minha cabeça, a morte dele me salvou. Eu rompi seu crânio", escreveu ela em uma carta quando já estava em idade avançada.

O saldo de cinco mortos e trinta feridos aponta para a maior tragédia automobilística em solo brasileiro. Por outro lado, pelos precários níveis de segurança da época, é um pequeno milagre o fato do carro não ter avançado ainda mais contra a multidão, em uma espécie de prévia do que ocorreu em Le Mans em 1955. A maciça presença de autoridades, policiais e carros de resgate no local ajudou a controlar o pânico que se instalou na multidão, evitando uma tragédia ainda maior.

O acidente do Jardim América não diminuiu a paixão do paulistano pelas corridas. Perceberam a necessidade de realizá-las em local fechado e construíram o Autódromo de Interlagos. Inaugurado em 1940, seu traçado desafiador o transformou em uma das maiores jóias do mundo do automobilismo, antes que meia dúzia de gananciosos desfigurassem seu traçado no final dos anos 80.

Hellé Nice jamais pôde esquecer do ocorrido. Uma persistente dor na mandíbula e os incessantes sonos agitados lhe deram motivos diários para isto. Sua carreira praticamente se encerrou ali. Suas raras participações posteriores se resumiram a alguns ralis e corridas femininas. Mas o feroz mundo dos Grande Prêmios nunca mais fez parte de sua vida.

9 comentários:

Anônimo disse...

Woww!!!! Que história hein? O transito até poderia imaginar, mas nunca me passou uma corrida de automóveis em um circuito "de rua" em SP.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

História interessantíssima, deixou a vontade de pegar nesse livro agora!

Anônimo disse...

Meu sogro, um moleque de Pinheiros na época, até hoje comenta sobre o agito que foi a presença da Hellé Nice em São Paulo. Ele não esteve na corrida (talvez pra sorte dele e minha), mas o evento, junto com a passagem do Graf Zeppelin, é uma das memórias mais fortes da infância dele.

Alessandra Alves disse...

porreta! (a mulher e a coluna)

Anônimo disse...

Ico, não foi em homenagem a ela que surgiu uma leva de mulheres chamadas Helenice após a sua participação nesta corrida em SP? Se não me engano, já havia lido algo sobre isso...

Blog F1 Grand Prix disse...

Já conhecia o texto e a história, mas vale sempre a pena relembrar. Das mulheres em cena hoje, poucas são boas (de braço) realmente: Danica Patrick e Bia Figueiredo vêm à minha cabeça logo, mas não consigo lembrar de outras...

Ico, não tem nada a ver, mas...

Já viu essa pérola daqui:

http://www.youtube.com/watch?v=zkDPuOIgZu4

Grande abraço!
Gustavo Coelho

Ico (Luis Fernando Ramos) disse...

Francisco, é isso mesmo: se vc conhece alguma Helenice, pode ter certeza que o nome dela veio dessa mulher aqui.

Gustavo, sensacional o vídeo! E muito bom o seu blog tb, parabéns!!!

Alexandre Maroto disse...

Isso mesmo, minha tia tem o nome de Helienice justamente originado de Hellé Nice que na época ficou muito badalado