quinta-feira, 22 de abril de 2010

O SENHOR DOS ANÉIS: A SOCIEDADE DO FUTMASAJI

Estou em casa, mais de três dias depois de ter deixado o hotel em que me hospedei para a cobertura do GP da China. Mesmo sabendo que é uma história com final feliz para o personagem central, vale ler o longo relato da aventura que foi chegar até aqui. Que está dividida em três partes – uma para cada dia de jornada. A analogia com o Senhor dos Anéis foi automática e já surgiu vendo as imagens do vulcão em erupção e as notícias dos problemas que ele trouxe. Lembrei-me da hora em que Frodo e Sam avistam Mordor pela primeira vez e o hobbit-jardineiro filosofa: “O lugar que ninguém quer estar é o lugar para onde temos que ir”.

Escrevi os trechos ao final de cada dia. Confira abaixo o primeiro e... não perca os próximos capítulos!

(P.S.: O “Credencial” deve ser gravado e postado ainda hoje, mas só depois de uma soneca reconfortante... gollum, gollum!)

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As nuvens negras emanadas pela Montanha da Perdição tomam conta da Terra-Média. E, como na famosa trilogia de Tolkien, o caminho até Mordor (ou pelo menos para perto dali) é cheio de percalços, surpresas e reviravoltas. Até aqui, tem sido bastante divertido tomar o rumo de casa. E ainda estou muito longe.

O brasileiro já viveu seu caos aéreo e talvez por isso nem queira muito saber a extensão do problema que está acontecendo na Europa e seu efeito cascata no resto do planeta. Dá para resumir numa frase: a coisa está preta.

A história da minha volta começou às sete da manhã de segunda-feira, quando o despertador tocou depois de duas parcas horas de sono – antevendo o dia caótico que teria, passei a noite praticamente em claro adiantando o máximo possível do material de segunda-feira, o rescaldo do GP da China. Peguei um táxi do hotel perto do circuito para o aeroporto de Pudong com um fotógrafo tcheco.

Foi uma hora e meia de sustos e respirações prendidas. Quem acha o trânsito paulistano caótico, é porque nunca esteve em Xangai. Não é à toa que o visitante é proibido por lei de dirigir ali, senão morreria na primeira esquina. Caminhões se jogam no caminho de carros menores sem cerimônia. Estes não temem em tirar as maiores finas para ocupar qualquer espaço livre que se abre.


E não só eles: motonetas, bicicletas e pedestres não esperam abrir o sinal vermelho para atravessar uma grande avenida. Basicamente eles cruzam um terço, esperam um pouco, cruzam outro terço, outra espera e completam a operação. Tudo enquanto o tráfego que vem no sentido transversal tira as mais incríveis “finas” deles em altíssima velocidade, como se não estivessem lá. É basicamente uma anarquia total, na qual a arma de cada veículo é a buzina, usada sem medida e/ou cerimônia.

Quando cheguei a Pudong, já tinha conversado bastante com Jiri Kranek, o fotógrafo. Como um sinal da sorte que vem me acompanhando o tempo inteiro nessa roubada, vi de cara que tinha tirado a maior delas: meu parceiro na epopéia é um dos caras mais tranqüilos e gente boa que eu já conheci. Conversa sobre qualquer assunto, está sempre dando risadas e com o astral para cima. Uma energia ideal em meio a um ambiente cheio de gente perdendo as estribeiras, dando escândalo, tentando achar um culpado numa situação em que ninguém tem culpa – Sauron, talvez, mas há controvérsias quanto a sua existência.

O check-in no balcão da Aeroflot foi rápido. Até porque ele não aconteceu. Embora o avião até Moscou tenha decolado normalmente, eles não deixaram embarcar ninguém cujo vôo até o destino final estivesse cancelado. Era o nosso caso e o de boa parte dos passageiros. “Em Moscou os hotéis já estão todos cheios, vocês terão de ficar aqui e remarcar suas passagens no nosso escritório”, explicou o russo responsável por manter a turba calma e a casa em ordem. Algo que fez com notável competência, aliás.

Formou-se então uma fila gigantesca para o processo. Formou-se então a “Sociedade do Anel”. É impressionante como as pessoas mais diferentes se unem e tornam cúmplices quando todos estão na mesma barca furada. Tchecos, chineses, italianos, alemães, holandeses, franceses, austríacos, todos passaram aquelas horas de espera trocando informações, mensagens de apoios, piadas. Eu até saquei um baralho da mala e fiquei entretendo diferentes grupos por alguns minutos. Quando chegou nossa vez de remarcar nossa passagem, as duas horas e meia de espera haviam passado num estalo.

Todos caminhos levam à Roma. Como um dos únicos aeroportos operantes, Fiumicino foi a variante que me foi oferecida para terça-feira. Ou que o trecho todo até Viena fosse remarcado para a próxima semana. Com meu visto de estada na China prestes a expirar e cansado de burocracia, não titubeei em assinar um papel no qual aceitava a mudança de rota, assumia os custos do meu deslocamento de Roma até minha casa e declarava que não processaria a Aeroflot por isso. Acho que tomei a decisão certa. Tenho assento garantido até Roma, mas fiquei um pouco com a pulga atrás da orelha por ficar na lista de espera do vôo de hoje de Xangai até Moscou. “Eu não posso confirmar, mas fica tranqüilo que você embarca. Vai acontecer amanhã o mesmo que hoje, indo para Roma, você terá um lugar no vôo”, explicou o competente.

O próximo passo foi achar algum terminal de Internet para reservar um quarto de hotel na cidade, o que consegui com uma máquina mais lenta que os carros da Hispânia no balcão de informações do terminal de chegada. Depois de meia hora esperando páginas carregarem, consegui dois quartos num quatro estrelas por apenas quinze euros cada. Sorte grande.

Jiri (pronuncia-se algo entre Írji e Írxi) teve a feliz idéia de abrir mão de um táxi e pegar um ônibus até o endereço. A grandeza de Xangai e a aparência hostil da China sempre abafaram qualquer ímpeto de sair da bolha de segurança (hotel-táxi-circuito-táxi-centro de compras-táxi-restaurante) que sempre me coloquei. Deu para perceber que o bicho-de-sete-cabeças tinha, na verdade, uma como qualquer bicho.

O hotel de quatro estrelas era astrologicamente inflacionado: com exceção do elevador mais inteligente que eu já vi, tudo era muito simples. Mesmo o prometido acesso à Internet era um buraco na parede do tamanho de uma caixa de fósforos, sem nenhuma “fêmea” para acondicionar a ponta macho do cabo. “Soly, it is bloken”, justificou a recepcionista. Jura?

Mas eu só precisava de uma cama para uma ligeira soneca, então tudo estava ótimo. Às oito encontrei Jiri na recepção para irmos à cidade comer alguma coisa. “Vamos de metrô”, sugeriu ele. Depois do passeio da tarde, topei rapidinho. Chegamos à estação e ficamos tentando decifrar o mapa das linhas escrito todo em mandarim. “Tem uns prédios bonitos de uma parte velha perto do rio. Acho... que é... hmmmm... talvez seja... aqui!”, falou ele, e apontou sem qualquer convicção para uma estação situada perto de uma curva da risca azul (o rio) que cortava o mapa. “É para lá que nós vamos”, bradei decidido.


O metrô de Xangai é um dos mais modernos e limpos que eu já vi na minha vida, incluindo aí os banheiros. Vagões interligados, televisões por toda a parte e muito espaço, certamente por já estarmos além do horário do rush. Descemos na estação pré-definida e deu para perceber logo de cara que não estávamos em nenhuma área turística. Pelo contrário, pessoas invadiam a rua e corriam para pegar um ônibus que tentava abrir passagem entre elas. O comércio simples e variado anunciava que quem convivia ali eram locais e apenas locais.


O instinto nos fez virar na primeira à esquerda e o deslumbramento foi total. Tudo o que eu sempre imaginava que era a Ásia estava ali. Uma rua mal-iluminada, tomada por pedestres, motonetas e ambulantes. O ar era lúgubre pelas frituras que vinham de algumas casas. Comer ali nem foi cogitado, pois não queria correr o risco de mastigar um cachorro por desinformação. Mas o movimento era fascinante e, o que me surpreendeu, os locais olhavam para nós com naturalidade. Não havia diálogos, mas as negociações eram feitas com uma caneta e renderam um cinto de couro legítimo para mim e uma lata de chá verde para meu colega. O clima com os vendedores era amistoso e viver aquilo ali era bom demais.

Já estávamos perto do final da rua quando Jiri apontou para uma casa como todas as outras e decretou. “Vem, vamos fazer massagem no pé ali”. Eu nunca tinha visto nada mais fascinante. Era uma sala na qual estava espalhadas umas seis poltronas cobertas por toalhas. Caixas também com toalhas serviam para o apoio dos pés e tinas com água quente eram o local de descanso daquele que não estava sendo massageado. Em frente ao cliente, as massagistas trabalhava com total dedicação. O lugar era de uma simplicidade incrível, com paredes sujas e uma velha tevê de tubo que passava uma espécie de novela militar local. Um outro cliente dava o toque final: um chinês completamente bêbado, mas engraçado, que nos bradava repetidas vezes “Welcome to Shanghai” e “How do you do”.


Uma coisa que volta e meia gosto de fazer nessas minhas viagens cobrindo Fórmula 1 é uma massagem no pé. Normalmente em spas ou centro de belezas que existam nos hotéis que eu porventura me hospedo. Mas o que estava vivendo ali era completamente diferente. A chinesinha que foi me tratar parecia ter pós-doutorado nos músculos abaixo do meu joelho. Uma jovem cuja feiura e dentes amarelinhos sublinhavam a austeridade do lugar. Mas que identificava ao menor toque um nó nos músculos da sola do pé ou na base da batata da perna. Era a senha para ela levantar os olhos com um ar de reprovação para um bípede estrangeiro e estressado. Apertava com gosto, depois ia buscar a solução em outro grupo de músculos: alisava, apertava, dava palmadas, socos. Passado um tempo, voltava aonde estava o nó e ele tinha sumido. Nunca tinha visto nada parecido. A melhor massagem da minha vida demorou mais que uma hora e custou, acreditem, menos de oito reais. Algo que só o ambiente pitoresco já valia.

Pisando em nuvens, Jiri e eu voltamos àquele cenário dantesco. Numa minúscula loja algumas casas à frente, dois velhos chineses jogavam cartas. “Vai lá e faz uma mágica para eles”, sugeriu meu colega tcheco. Um desafio e tanto, afinal a oratória sempre tem grande influência no efeito de um truque e eles, obviamente, não entendiam uma vírgula do que não fosse mandarim. Terminada uma mão do jogo que faziam, pedi o baralho, misturei as cartas e solicitei que o mais simples deles tirasse uma carta. Fiz a mágica só usando sinais e ele se surpreendeu no final, como esperado. Escancarou então um sorriso com três dentes que ainda restavam e nunca tinham visto uma escova, cheios de abcessos e com um odor muito desagradável. Higiene à parte, foi um momento de um lirismo puro, o encontro de dois mundos completamente distintos no elemento lúdico do ilusionismo.

Era hora de ir atrás de um lugar para jantar. Chegamos a uma avenida grande, mas já passavam das dez da noite e o único restaurante à vista já estava até com as luzes apagadas. Um grupo de locais surgiu na calçada e, falando inglês e fazendo mímica ao mesmo tempo, perguntei se eles nos podiam indicar onde encontrar algo para comer. Um deles respondeu no inglês mais perfeito que eu já ouvi para seguirmos a pé na avenida por uns cinco minutos, chegaríamos e um prédio com letreiros neon com vários restaurantes. Foi uma baita dica. Era uma área pública muito interessante, um quarteirão moderno amontoado de bons restaurantes em torno de um grande espelho d’água com diversas fontes. A Xangai dos ocidentais na fronteira do bairro dos locais. Foi um dia que mudou completamente meu (pré-?) conceito da cidade e deu gostinho de querer “se-perder-mais-por-aí” da próxima que eu visitá-la.

A jornada começou, a Sociedade do Futmasaji foi formada e o ânimo para o caminho até Mordor é grande. Vou dormir e sonhar com pão de Lembas, as minas de Moria e a minha Galadriel.

18 comentários:

Márcio disse...

Salve Ico.
Não entendo nada de Senhor dos Anéis, mas a narrativa e a viagem estão muito legais. Aguardo o fim da epopeia com ansiedade.
Abraço,
Márcio Madeira

Unknown disse...

Grande Ico!
Adorei essa aventura, os fatos como são descritos, está ótimo, ri bastante e me encantei enquanto lia; Além de viajar junto, por isso parabenizo e agradeço por este material!

Unknown disse...

Caro Ico.
Há muito acompanho seu Blog e Twitter e com menos freqüência o PodCast, pelo fato de não estar no iTunes, fica mais complicado.
Quero agradecer a sua paciência em detalhar suas aventuras. Muito legal!
Abraço e aguardo a continuação.

Marcelo Urânia disse...

massa demais! ótima leitura pra manhã de "segunda-feira" (na verdade quinta pós tiradentes).

abraço!

Bruno A. disse...

Confesso que esperava muito menos quando comentei em outro post da crônica da viagem.
Delícia de leitura. Mal posso esperar pelas outras partes! Parabéns, Ico!!

Anônimo disse...

Ico, e por tudo que sempre visitamos o seu blog VALEU CARA

Unknown disse...

Falei outras vezes em posts anteriores e repito : Voce devia escrever um livro, sabe transportar seus leitores para o universo que vivenciou nos mergulhando na história como se estivessemos lá.

Parabens !

Daniel Médici disse...

Bravo, Ico! A cada relato de viagem seu aprendo alguma coisa.

Você parece ter se divertido mais do que a maior parte dos jornalistas (tenho acompanhado a jornada de alguns via blogs/Twitter). Aparentemente, os que se deram melhor foram os que apostaram na Emirates com escala em Dubai, e de lá (após umas 24h de espera) para Nice, pegando um trem lotado para Marselha e alugando um carro até Paris.

Um jornalista inglês, se não me engano o Adam Cooper, tinha um voo marcado para Kuala Lumpur, mas se confundiu acerca do aeroporto. Como resultado, passou a maior parte da semana em Xangai...

A partir de agora, considero fortemente visitar Xangai algum dia. Aguardo ansiosamente a continuação da sua saga - sublinhe-se "saga": uma palavra de raiz islandesa, a única daquele país a se infiltrar nas línguas latinas. Acho que não existe termo mais apropriado no momento.

Atenágoras Souza Silva disse...

Tomara que nas últimas corridas asiáticas, lá para o fim da temporada, mais um vulcão exploda e deixe a Europa virtualmente inacessível.
E que você se perca mais por aí!
Você produziu um texto de uma beleza ímpar sobre as coisas que fez e a percepção do local!
Ah, e eu não achei a moça feia do jeito que você pensou. :-D

Um grande abraço do fundo do meu coração vermelho de outubro de 1917,
Atenágoras Souza Silva.

Ainnem Agon disse...

HUahuahu, parabéns ICO, um dos melhores posts que já li. Foi praticamente uma quest de RPG esse seu passeio por Xangai, só faltou enfrentar o chefe da dungeon.

Não sabia que você é Tolkienista também, ou que gosta pelo menos do SdA. O Velho é "meu Mestre".

Auardando ansiosamente o Credencial.

Eduardo Malheiros disse...

Hahauhau, muito bacana Ico.

Gostaria até de sugerir - sei que eu, como muitos, iria gostar muito - que essas aventurinhas e relatos sobre as cidades e países de cada GP fossem mais vezes contadas. Elas sempre rendem ótimos posts e tem tudo a ver com o conceito do Blog de, muitas vezes, tranportar-nos para um mundo da Formula 1 que vai além de carros, circuitos e pontuação irrelevante.

Pelos comentários acima, leitores assíduos não faltariam.

Grande abraço!

Marcel disse...

Simplesmente muito melhor que F1. Adoro esses textos, em pequenas viagens que faço me deparo com essas coisas pitorescas. Grande abraço Ico.

Anônimo disse...

Grande Ico...
Valeu por contar essas aventuras, muito bom!
Abçs e aguardarei o 2 towers e o return of the king

Rangel disse...

Ico, parabéns. Pela história, pela analogia com o Senhor dos Anéis e, principalmente, pelo bom humor em enfrentar o inevitável. Pra que destilar mal humor se o vulcão não vai sossegar por causa disso? Melhor fazer limonada com esses limões... No aguardo das outras partes!

Talita disse...

Em ritmo de home! sweet home!
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Muito boa sua disposição frente à tamanha adversidade de uma viagem. Invejável eu diria.Acho que nada como se fazer o que se gosta, aí, qualquer pingo, com todo respeito ao vulcão/fumaça não vira uma tempestade.
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Mas confesso, meu lado patricia ( não no sentido pejorativo hein)viraria do avesso.
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Se isso tudo virar livro, eu compro!

Sobre as transmissões, faço a linha axé/pagode/funk/sertanejo detonautas e afins tocam na rádio eu mudo. E o público na minha casa é esse citado pelo Ico, só quer saber da largada/chegada. E cada um, com seu cada um e tá tudo bem.

.Aprendi a olhar e ouvir a fórmula com um ex namorado. A minuciosidade dele era dantesca. Aquilo me interessou, desde então.Enfim, a essência de toda competitividade é que deixa o papo interessante. Pra uns mais, outros menos. Como o atual namorado!E tá tudo certo.

Eu vou seguir na Bandnews, sempre que me deixarem e por aqui,fazendo a lição de casa.

Rafa disse...

Ico, eu te invejo. Pela massagem, pela "diversão forçada" nesses dias a mais na China e, claro, óbvio, por vc estar em todos os GPs.

Belo texto!

[]'s
Rafa

Paulo Cunha disse...

Na maioria das vezes eu não comento nada porque geralmente já comentaram tudo o que eu teria a dizer, mas dessa vez jamais será demais dizer o quão bão está esse texto.

Barata disse...

Muito bom. Inclusive o nome da sociedade! heheheh