terça-feira, 15 de junho de 2010

ENCONTROS IMPROVÁVEIS

O tempo passa muito rápido para quem faz a cobertura in loco da Fórmula 1. O ritmo de viagens é massacrante, o volume de trabalho é intenso e a quantidade de informações a serem processadas também. A impressão que dá é que já se passaram pelo menos seis meses desde que Jenson Button venceu o GP da China e eu vivi a epopéia da viagem em direção às nuvens do vulcão. Na verdade, fazem menos que sessenta dias.

É por isso que há tempos eu parei de medir a vida em tempo e passei a dar valor a momentos. Afinal, são os bons – e, infelizmente, algumas vezes os maus – que são recordados. Em cima disso, a cobertura do último final de semana foi uma das mais especiais que vivi na Fórmula 1. Pelo mesmo motivo da epopéia Xangai-Viena: viver encontros inesperados e gratificantes.


Já tinha chegado à cidade quando recebi o simpático e-mail de um leitor do blog, o Tiago Negreiros, dizendo que estaria no circuito assistindo à corrida e que gostaria de me entrevistar. Consegui um tempinho livre entre o treino livre e a classificação do sábado para ir até a arquibancada do primeiro grampo falar com ele. Encontrei um compenetrado e preparado entrevistador, com uma pauta completíssima, toda anotada em folhas de caderno.

As perguntas fluíram e foi bem interessante ver o interesse do jornalista/torcedor em entender mais os meandros do que ocorre dentro do paddock. Encerrada a gravação, ficamos falando um tempo sobre o Canadá e descobri que ele é o editor de um jornal para a comunidade brasileira em Toronto. “Então se eu vier para cá um dia vou te pedir emprego”, aproveitei. Acho que vocês sentem pelo“Credencial” – cuja próxima edição vai ao ar amanhã, aliás – como eu gosto de ter contato com um pessoal que gosta e tem olho crítico para a Fórmula 1. Estou amadurecendo a idéia de fazer um grande encontro do blog para este tipo de conversa. Seria muito bacana, espero que um dia dê certo.
O barato continuou quando encerrei meu trabalho no final do sábado. Eu sabia que dois colegas canadenses de uma liga de GPL estrangeira que eu participo (a oAo) estavam na cidade, trabalhando como fiscais de pista. Quando peguei a van que leva os jornalistas da pista a um hotel mais perto do centro – um trajeto de uns vinte minutos – mandei um torpedo perguntando se eles queriam jantar. A resposta veio em seguida: “estamos num churrasco no paddock das outras categorias”. O carro tinha acabado de passar por lá e foi impossível não notar o clima de festa que um grande número de pessoas fazia em torno de uma grande tenda branca. Imediatamente pedi para o motorista parar e desci ali mesmo.

Não sei se acontece algo parecido com os fiscais do GP do Brasil, mas a idéia dos organizadores no Canadá é muito boa: como toda a turma que trabalha na prova évoluntária, eles organizam uma grande celebração no sábado, com muita cerveja e churrasco, tudo de graça. Fiquei uma hora e meia conversando com Drew e Simon,falando do game, da liga, da vida no Canadá, da rotina do lado de dentro de um paddock de Fórmula 1. Saí de lá com a amizade iniciada em boxes virtuais bem mais fortalecida no mundo real. E com a promessa de voltar para mais churrasco e cerveja no ano que vem.
Os encontros improváveis ainda estavam longe de terminar. No domingo, ao encerrar os trabalhos, estava na van esperando para voltar ao hotel quando chegaram dois norte-americanos sexagenários, um deles vestindo a camiseta laranja que os membros da McLaren usam em caso de vitória. Perguntei se eram da equipe e os parabenizei pelo resultado depois da resposta afirmativa. O senhor que estavaem trajes “civis” agradeceu com sinceridade, quando o da camiseta laranja perguntou:“você sabe quem é ele?”

Enquanto eu tentava reconhecer a fisionomia, foi me entregue uma velha foto colorida, com as bordas completamente amareladas. Havia um dos primeiros modelos da McLaren na Fórmula 1 no centro da imagem, com um grupo de pessoas em volta. Reconheci rapidamente Denny Hulme, com uma expressão de rosto pensativa, e Bruce McLaren,olhando para o lado e dando uma risada. O senhor de laranja começou a apontaras outras pessoas da imagem. “Este aqui à direita é Gordon Coppuck, que desenhava os carros. Eu sou esse outro aqui, mas eu não sou importante. E o sujeito alto é esse que está aqui no carro. É o Tyler Alexander, cara”.

O senhor no outro banco sorriu surpreso quando eu reconheci o nome. “Putz, você era o gerente da equipe na época do Bruce, um dos caras que ajudou a construir aMcLaren!” Foi a senha para que engatássemos numa grande conversa sobre os velhos tempos. Alexander contou que esteve recentemente em Woking na homenagem aos 40 anos da morte do fundador do time, mas falou que foi um momento mais especial do que emocional. “Naquela época, morrer fazia parte do jogo. Você fica ferido, sente um vazio, mas aprender a bloquear as emoções”. Falou também do sucesso que conseguiram correndo de Can-Am na América. “Todo mundo achava que era muito fácil pela maneira que ganhávamos tudo. Mas era um grupo de umas oito, dez pessoas, que fazia tudo sozinho: o projeto e o desenvolvimento do carro, a construção dele, a montagem do motor, a manutenção... era um trabalho danado”, assinalou.

O colega da camisa laranja, um mecânico dos primeiros anos do time chamado Pat, contou uma história interessante. “Alguns anos atrás, vim assistir ao GP do Canadá com a minha esposa. Sem passe da equipe, visita ao paddock, essas coisas. Vim para ficar na arquibancada, era o que eu queria, apenas ver e viver a corrida. E uma das categorias que estava na programação era de Can-Ams históricos. Quando os primeiros carros começaram a passar, comecei a chorar feito criança. Foi ridículo, os carros passando e eu lá, chorando por quase uma hora. Via os bichinhos andando e ficava arrepiado de pensar por quantas horas, dias, eu fiquei lá colocando minhas mãos neles para que andassem”.

A van já estava chegando ao hotel quando Pat deu a boa notícia. “O Tyler está finalizando um livro de memórias, vai sair nesse ano ainda. Já li algumas páginas e vai ser umtrabalho sensacional”. Me despedi agradecendo a conversa e prometendo trazeruma cópia da publicação no ano que vem para que eles assinassem. Apesar de eu realmente não gostar de Ron Dennis, por sua postura extremamente arrogante, é preciso reconhecer que ele sempre procurou manter as raízes da McLaren intactas, valorizando as pessoas que plantaram as sementes da equipe e, volta e meia, valorizando o laranja do passado “kiwi” de seu fundador.

Acabou? Nada. A noite já caía quando fui encontrar meu colega Joris Fioriti, jornalista da Agência France Presse e de português fluente, que tinha me prometido uma surpresa. “Você vai adorar”, garantiu. Chegamos a uma enorme praça, lotada de gente e com vários palcos espalhados. Era o “FrancoFolies”, um festival de música francofônica. Dei um pulo de alegria quando chegamos em frente e um palco ainda vazio, com uma placa anunciando: “Próxima atração – Lo’ Jo”. “Puta que pariu, Joris, você é um gênio!”
Se você está se perguntando que catzo é Lo’ Jo, eu explico. No início de 1997, passeid ois meses morando em Paris para aprender francês. Através de uma amiga que fiz durante a estada, conheci esta banda altamente alternativa, que faz uma espécie de World Music com influências do Norte da África (argelinas, tunisianas). Fiquei de cara fascinado pelo som vigoroso, pela poesia das letras, pelas harmonias criadas pelas duas vocalistas e pelo clima proveniente do uso de instrumentos daquela região. Quando conheci Joris, no ano passado, uma das primeiras coisas que eu perguntei foi se ele conhecia a banda. Nunca tinha ouvido falar. “Você é um francês fajuto”, provoquei. “Nem conhece o melhor som produzido no seu país!”
Pois o cara viu o cartaz do festival, lembrou da história e aprontou a surpresa para mim. Jamais imaginei que veria Lo’ Jo ao vivo. E sou uma pessoa mais feliz por tê-lo feito. Foi um show que encontra facilmente um lugar bem perto do topo daquela lista dos melhores da minha vida. Todo o clima percussivo e melódico dos álbuns de estúdios estava ali na minha frente. E as vozes e instrumentos ganharam uma cara. Era a primeira vez que Lo’ Jo tocava em Montreal e em pouco tempo a frente do palco, o menor dos três usados pelo festival, ficou tomado por uma multidão completamente hipnotizada pela qualidade da música. Encerrada e hora e pouco de apresentação, ainda deu tempo de falar com o líder da banda, Dénis Pean, um senhor com uma aura forte no palco e de uma simpatia extrema na hora de recepcionar as pessoas. Saí de lá nas nuvens, com um CD autografado e agradecendo ao Joris pela enorme presença de espírito de me levar lá. “De jeito nenhum. Eu é que tenho de te agradecer. O som é demais, agora eu entendo porque você falava tanto deles”. Legal. Ganhei mais um fã para o Lo’ Jo. E saio de Montreal com essa certeza de ter vivido uma das viagens mais gratificantes que já fiz nessa vida cigana atrás da Fórmula 1. Estou rico, muito mais rico. Com a alma alimentada de momentos especiais que vou carregar daqui em diante.

E ainda por cima teve a corrida. Uma baita de uma corrida!

11 comentários:

FranciscoCarlos disse...

Super bacana, Ico!
É bom ver suas linhas, extrema dedicação e paixão pelo que faz.
Show de bola, mais sucesso ainda!!

Augusto Lopes disse...

Caramba..... fico sem palavras... que texto gostoso de se ler.
São textos como esse que me fazem admirar cada vez mais o blogueiro.

Parabéns!

Nicholas disse...

Faço minhas as palavras do Augusto. A Riqueza cultural e temporal encontrada nessas linhas me deixa saudoso de algo que não vivi...

Parabéns Ico...

roger disse...

Velho...pelas tuas coberturas, você merece isto sempre!
Hugs!

Antonio Silva disse...

Nossa....Ico muito emocionante o seu depoimento! Em algumas partes do texto me senti como se estivesse lá também dividindo essas emoções. Parabéns por ter a oportunidade de fazer tantas coisas que gosta! Você pode ter certeza que é um privilegiado.

Grande abraço

Lucas Carioli disse...

Que fim de semana hein!!

Fernando Kesnault disse...

Gostei muito de suas histórias, parabéns. Vou ver as musicas deste grupo no YouTube e Ico conhece o grupo irlandes "The Coors"?? São quatro irmãos (3 garotas e um rapaz), é ótimo,vale a pena conferir... Um abraço.

Alcivio disse...

Texto maravilhoso!! Parabéns e continue ousando mais estes textos intimistas. Um abração.

Marconi disse...

Ufa! Que fds em Ico! Se eu não estou enganado, vc indicou aquí no Blog esse GP como um dos melhores do mundo, em termos de entretenimento para os fãs de F1. Tá aí, sempre disse que meu 1º GP internacional seria Silverstone, mas depois deste post, acho que será Montreal!

Unknown disse...

Muito legal, emocionante, a medida que lia, abria um sorriso enorme, ao passo que era questionado por minha esposa e minha irmã, que não entendiam o momento: é piada, é piada? oque é o que é? oxe, menino fala... e eu viajando...

Meus parabéns e, muito obrigado; Foi sensacional!

dasad disse...

Por essas e outras que o Canadá nunca poderia ter deixado a Fórmula 1, nem por um ano... é uma heresia ter corrida no Bahrein e não em Montreal...